Amigo Designer, você é apenas "mais um tijolo na parede"

João Carlos Quintino
9 min readApr 28, 2021

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O titulo é uma referência à musica de Pink Floyd “Another brick in the wall” e esse texto não foi escrito para ensinar nada. É apenas uma reflexão.

Há diversas formas de escrever sobre "Another Brick In the Wall", do Roger Waters, uma obra fonográfica icônica da banda Pink Floyd, composta no final dos anos 70.

Pode-se relacionar a letra à eventos traumáticos sofridos por Waters durante a sua vida e interligá-la à psicologia. Ou, se usarmos outra lente, enxergar à letra como uma crítica política e social — atualmente mais aceita e debatida — sobre a formação escolar e os caminhos percorridos no processo de educação. Ou talvez você prefira usar as lentes das relações de poder antagônicos que se desenvolvem em diferentes grupos sociais na construção de uma identidade.

Enfim, podemos utilizar o campo do Design como local de análise da obra através da conexão entre formação do design moderno, atuação e "modo de ser" no mundo, à imposição de uma praxis intencional e muito bem determinada, o impacto da construção das experiências simbólicas e a responsabilidade social em torno da criação de objetos de valores de uso.

Diante mão alerto, mais uma vez, que este texto é uma reflexão muito própria acerca do campo do design e a relação da praxis característica da disciplina e a construção de um modelo de sociedade, tanto no sentido da formação do designer, quanto das consequências da sua atuação e modificação do mundo das "coisas".

Por tanto minha idéia não é, nunca foi e jamais será impor uma forma de pensamento sistêmica ou atrelada à modismos tão típicos do momento ao qual estamos vivendo.

E seguindo este raciocínio, a melhor maneira de começar à analisar a obra é fazer um paralelo da formação do design moderno, da figura dos "influenciadores" e formadores de outros formadores do campo além, claro, da falta de reflexão crítica acerca da praxis própria do Design.

E a primeira questão que deixo é: como são formados os designers de hoje? Aqui vamos nos debruçar apenas à um grupo específico e em bastante destaque: os designers de produtos digitais (e serviços inerentes a produtos digitais).

Nos atentemos neste primeiro momento à formação do indivíduo. Escolas superiores tradicionais, que ainda vêem na Bauhaus uma base muito forte de atuação, ensinam em sua grade curricular introdução ao conhecimento de materiais, modelagem de corpos amorfos, construção de objetos esteticamente polidos, matemática, estatística e suas variantes e iniciação ao pensamento filosófico.

Esta forma de pensamento dominou e formou os agentes do campo do design durante praticamente todo século passado, sendo revisitado de tempos em tempos, adequando-se ao movimento de interesse do sistema capitalista.

Artefatos de criação de design gráfico e de produtos físicos tinham a impressão dos seus autores e o reforço da mensagem de autenticidade, conceitos e princípios de quem as produzia. A busca pela estética do "belo", do bem elaborado, bem pensado, atemporal e único era uma das várias características de valorização e atribuição de valores simbólicos de uso dos objetos.

A partir do início dos anos 70, o design é levado à um outro nível. O método de pensamento projetual debatido em "The Science of the Artificial" de Hebert A. Simon, posteriormente usado por Rolf Faster, fundador da IDEO e pioneiro na formação de opinião sobre o "Design Thinking", é absorvido pelo mundo acadêmico e dos negócios como uma forma inovadora de criação de "coisas" de consumo.

Temos então a primeira referência personificada em "Another Brick in the Wall": O professor.

Da Bauhaus, à escola de Ulm, da IDEO ao Don Norman, Nielsen, e tantos outros formadores de agentes do design que ditam regras até os dias atuais, vemos se repetir a prática de modularização e busca pela ausência de uma identidade própria que "obriga" os agentes do design a seguirem um modelo predeterminado.

O design abdica de uma abordagem de servidão ao ser humano e a sociedade e assume uma posição de submissão aos interesses do capital. O design político e de bem estar cede espaço ao design de consumo e serviços que objetificam as pessoas e impõe uma necessidade de atualização constante dos artefatos.

A inovação estética, por sua vez, tem como principal objetivo impor uma abordagem econômica através da técnica de venda e todas as especializações ligadas à diminuição do período de inovação estética necessária para que os objetivos do capital sejam atingidos. Os capitalistas, sob esse aspecto, não podem mais fugir do fato de que a mudança provocada no comportamento da sociedade que, em busca do querer mais e sempre o mais novo e mais inovador, tornou-os dependentes dos agentes do campo do design.

Porém essa dependência é apenas simbólica para o lado dos Designers, dado que os mesmos não reconhecem o poder da força de trabalho empregada em suas produções.

E este é o nosso segundo personagem: O aluno.

Ao longo da formação do designer, o indivíduo é constantemente estimulado a seguir um padrão de comportamento e forma de pensamento que o molda para seguir as regras do jogo econômico e modelo de consumo vigente em seu tempo-espaço.

Desmotivado de seguir uma forma de pensamento independente e crítica acerca do seu papel, a grande maioria dos indivíduos da área se rendem ao movimento imposto pelos pares e pelo mercado afim de continuar atuando como força motriz desenvolvedora de objetos de valor de uso.

Em Another Brick in the Wall, as salas de aula são os espaços formadores de indivíduos iguais que falam sempre as mesmas coisas e pensam da mesma forma. Pink, o principal personagem do clipe, é ridicularizado e humilhado pelo professor autoritário ao ser flagrado escrevendo poesia. Em uma crítica ao momento atual, seria o mesmo que se opor seguir as normas impostas por outros agentes do campo que, com mais ou menos visibilidade e destaque, ditam regras a serem seguidas inquestionavelmente por todos os outros pares.

Na sequência encontramos uma espécie de fábrica onde os alunos marcham em sentido linear à um modelador de indivíduos. Crianças que entram com suas diferenças e personalidades e saem sem identidade, modelados a partir da mesma estrutura, com os mesmos pensamentos, repetindo os mesmos argumentos, sem pensar, sem questionar, sem refletir, apenas sentados em carteiras que remontam um mobiliário escolar.

Há, em um outro momento, esses mesmos alunos "coisificados" marchando como zumbis seguindo ordens de um professor autoritário. Marcham em direção a um moedor de carne.

Os alunos somos nós, designers formados seguindo um modelo de pensamento dominante, incapazes de questionar as estruturas que nós sustentamos. O moedor de carne é o mercado, que simplifica a nossa atuação à meros produtores de artefatos de consumos desejáveis e criadores de experiências e que nos ilude com promessas de melhores recompensas pelos bons serviços prestados, glamour e prestígio diante a sociedade e estímulo à uma mentalidade de indivíduos super-poderosos.

Paremos por um momento para analisar nosso contexto. Quem seriam os professores? Onde eles se encontram? O que discutem? O que querem passar? Como querem passar? Com que intenção e qual o sentido?

Olhemos agora para os congressos, palestras, textos no Medium, vídeos no Youtube, posts no Instagram ou LinkedIn de "influencers" no Design. O que eles falam? Por que? Como? Com quais intenções? Atendem à que interesses?

Percebem que é sempre mais do mesmo? Tenho certeza, caro leitor e amigo designer, que você dificilmente encontrará conteúdos que não sejam: "Design Thinking, Metodologias de design, Pesquisa em design — que tem como único objetivo identificar intenções de consumo ou introduzir um modelo de pensamento e comportamento ao comprador através de suas fraquezas — , métricas de negócios, gerenciamento de tempo, equipe, produto, impacto de vendas e conversão, KPIs, ROI, Ux vs UI, UX é mais que UI, Como mudar a carreira para UX, como UX writing mudou meu poder de convencimento", e tantas outras aplicações da técnica de venda que em nada questiona o sistema ao qual sustentamos com sangue, suor e algumas horas extras.

Isto deixa claro para qual direção segue a formação do design moderno; é comum ver pessoas de diferentes formações subitamente mudarem de carreira ao iniciar a sua praxis em design seguindo o modelo pré estabelecido e predeterminado pelos pares formadores de indivíduos uniformizados.

"Quero que todos pensem em Design Thinking…" — e todos vão para design thinking…

" Agora a nova onda é Design Sprint" — …mais uma vez, segue a boiada.

"Design de Serviços é a nova Buzzword"

A uniformização da forma de pensamento do campo do design leva pessoas à terem que se encaixar em certos modelos onde respostas prontas e "corretas" são esperadas, afim de melhor posicioná-las dentro desse grande moedor de carne chamado Mercado.

É por isso que iniciativas como os grupos de estudo e debates "Design e Opressão" ou o podcast SentiPensante se fazem tão importantes no momento em que estamos vivendo.

Em resumo…

… no mundo ao qual atuamos hoje, quem quiser sobreviver à um sistema capitalista predatório e cada vez mais neo-liberal, tem que ser capaz de promover experiências. Essas experiências, que acontecem através da compra e atribuição de valores simbólicos de uso dos produtos, são os atrativos e, muitas vezes, o meio de formação de características de grupos sociais que suplementam o ato de comprar e a redução da personificação do indivíduo em mero consumidor.

Por tanto, neste sentido, nós, amigo designer, não somos nada mais nada menos que apenas "another brick in the wall" em um contexto onde somos os principais agentes de construção de experiências de compra e criação de produtos de valor de uso simbólico.

Isso nos coloca numa posição muito clara de protagonismo colonizador e, ao mesmo tempo, de escravos do sistema. Por um lado, os capitalistas não podem mais retroceder à essa abordagem da lógica da promoção de experiências em troca de sobrevivência competitiva em forma de acúmulo de capital. Isso porque quanto mais um capitalista é capaz de fornecer experiências diferenciadas à seus consumidores, mais competitividade e acumulo de capital inerente da venda dos valores de uso simbólico ele concentra.

E é exatamente neste ponto que o Designer é um protagonista de construção de experiências, iludido numa falsa ideia de super-poder de mudar o mundo. A única coisa que interessa aqui é a capacidade do designer de produzir algo vendável. E isso nos torna escravos de produzir apenas aquilo que consiga trazer acúmulo de capital.

De certo modo, isso trás uma possibilidade de contra-golpe; a capacidade de poder impactar mais positivamente na sociedade e não apenas se render aos caprichos e interesses de faturamento capitalistas. Sim, relembre; não há mais como retroceder! O momento que vivemos atualmente, de exponencial aumento da oferta de emprego, é um reflexo da necessidade de diferenciação das empresas para competir no mercado. E se elas precisam acumular mais, faturar mais, vender mais, elas precisam de nós!

Por tanto, amigo designer, eu te peço encarecidamente: reflita sobre as suas ações diariamente! E não estou falando sobre o fato de converter mais, conseguir calcular um ROI ou ter KPIs muito bem determinadas e seguidas. Mas sim uma reflexão acerca do seu papel como um ser temporário que habita este planeta e que, muito em breve, deixará um mundo diferente para as próximas gerações.

Terá valido a pena passar por cima de questões éticas, morais, psicológicas e sociais para atingir o desejo capitalista de mais acumulação? Você, como responsável direto pela construção de experiências simbólicas, escolherá como propósito de existência submeter-se às ordens de acumulação sem questionamentos acerca dos impactos das suas escolhas? Da construção de uma experiência ao qual está inserido?

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João Carlos Quintino

UI / UX Designer, Illustrator and Architect student based in Recife, Pernambuco - Brazil.